Não deixe o lema “só faço o que amo” virar um mantra da frustração
No trabalho, cada um tem seu estilo. Fazer o que ama é importante, mas não deixe o lema “só faço o que amo” virar um mantra da frustração. Há muitas coisas a considerar
Desde muito cedo, o trabalho se apresenta como um aspecto fundamental da vida – quem nunca ouviu a famosa pergunta: “O que você quer ser quando crescer?”. É nesse espaço que nos tornamos úteis das mais diferentes formas, desenvolvemos potenciais, afetamos outras pessoas – e somos afetados por elas –, adquirimos uma identidade, entregamos algo ao mundo. E, pelo conjunto da obra, nos abastecemos de autoestima. Mas o lema “faça o que ama e seja feliz”, um dos mais alardeados nos últimos tempos, às vezes faz tudo ficar nublado. Como se só quem tem uma função legal, bonita, importante pudesse se sentir bem. Não. Seria generalizar demais.
Sem dúvida, é um privilégio poder casar trabalho e paixão. No entanto, essa crença não pode se tornar soberana. Ou excluiria milhares de pessoas impedidas pelas contingências da vida a pedir demissão em busca do emprego dos sonhos. A socióloga Bárbara Castro, doutora em ciências sociais pela Universidade de Campinas (Unicamp), entende assim. “Responsabilizar apenas o indivíduo pelo sucesso e pela felicidade é problemático. Ainda mais quando o modelo de organização da economia gera uma sociedade extremamente desigual.”
Quem também pondera é o psicoterapeuta e orientador profissional Leo Fraiman, de São Paulo. “Nossa cultura supervaloriza o parecer ser feliz. Mas, verdade seja dita, nenhum trabalho trará somente contentamento”, pontua ele. O percurso de qualquer lida, até as mais glamourosas, invariavelmente inclui dissabores. Claro, quando os dissabores superam os momentos de realização, algo pode estar errado. Mas o que costuma acontecer é que esquecemos algumas bases importantes que toda ocupação precisa contemplar. Segundo Fraiman, são elas: se sentir capaz, nutrir o senso de importância, impactar positivamente a vida dos outros, ser reconhecido e cercar-se de relacionamentos sadios. Considerar esses itens no rema-rema cotidiano é um bom começo.
A maneira como cada um compreende o alcance do seu ofício faz toda a diferença. Uma pessoa pode adorar música e nem por isso ser infeliz por seu trabalho diário envolver o funcionalismo público. “Ela pode vibrar com o fato de contribuir para o bom andamento do país”, exemplifica o psicoterapeuta. É essa capacidade de enxergar sentido naquilo que realiza que verdadeiramente conta.
Como bem já resumiu o monge beneditino alemão Anselm Grün, coautor de Trabalho e Espiritualidade – Como Dar Novo Sentido à Vida Profissional (ed. Vozes), quem cultiva o espírito no dia a dia inevitavelmente lança um olhar mais generoso à sua função, independentemente de expectativas relacionadas à aspiração profissional e ao sucesso. Na verdade, acrescenta ele, a esfera do labor permite o precioso exercício de descolar-se do egocentrismo. “O que está em jogo é desprender-se do próprio ego de tal modo que seja possível envolver-se inteiramente com o trabalho e com os colegas”, ele escreve.
Sua santidade, o dalai-lama, também derramou sua sabedoria sobre o tema. Os ensinamentos foram transmitidos ao psiquiatra americano Howard C. Cutler ao longo de uma série de conversas registradas no livro A Arte da Felicidade no Trabalho (ed. WMF Martins Fontes). A dupla propõe um raciocínio simples: analisar se, de alguma forma, o trabalho que desempenhamos impacta a vida de outra pessoa. Parar no ponto de ônibus o mais próximo possível para o passageiro que vai subir, instalar a tomada o mais perfeitamente possível para que não dê curto; levar para a aula um texto ainda mais curioso para o aluno que tem maior dificuldade de atenção…“Em qualquer atividade, podemos utilizar a força espiritual para mudar nossa atitude”, tranquiliza o líder, que sugere, num primeiro momento, frearmos estados mentais destrutivos como raiva, frustração, competitividade e inveja e, na sequência, substituí-los por perspectivas mais amplas. Um exemplo positivo de autoquestionamento: “Será que eu seria feliz naquela vaga desejada, que paga melhor, porém acarreta responsabilidades dobradas e expediente mais longo?”.
Ajustando a sintonia
Nos últimos anos, profissionais das mais diversas áreas têm perseguido novas ocupações ou dinâmicas de trabalho mais satisfatórias. Segundo a pesquisadora de tendências Rosa Alegria, vice-presidente do Núcleo de Estudos do Futuro, vinculado à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), esses movimentos sinalizam a exaustão crescente vivida no mundo corporativo em decorrência de carga horária inflexível, acúmulo de tarefas, metas superestimadas, prazos esquálidos, pressão por resultados, competitividade etc. “As pessoas estão sedentas por qualidade de vida, uma vez que o modelo organizacional há tempos extrapolou a tolerância física e emocional do ser humano”, observa a estudiosa. “A relação com o trabalho passaria por uma metamorfose se um número maior de empresas oferecessem ambientes favoráveis ao florescimento da criatividade e se os líderes priorizassem o capital humano, estimulando as subjetividades em vez de miná-las”, enfatiza.
Chegar a uma atividade que, se não é o emprego dos sonhos, também não representa uma fonte de estresse, depende muito de nós mesmos. A falta de sintonia pode ser fruto do descompasso entre a nossa natureza mais sutil e tudo o que gira em torno da função que desempenhamos. Cada um a seu modo tende a vingar no terreno propício. Há os que apreciam a rotina e os que a abominam; gente que viceja dentro de quatro paredes e outros que necessitam de vento no rosto; os que preferem a noite, e os que rendem melhor no turno do dia, e assim por diante. Respeitar esse alinhamento é de grande ajuda. Pode não evitar o descontentamento, mas, pelo menos, dá liga. E, indiretamente, espaço para pensar que a vida não é só trabalho.
Compreender a natureza mutante da motivação – motor que arranca e arrefece, ciclicamente – também ajuda a aplacar a angústia que, às vezes, insiste em nublar o campo profissional dando a falsa impressão de que as coisas estão fora do lugar. Não há porque entrar em desespero quando a empolgação minguar. Como sugere Rosa, uma volta na praça, minutos de meditação, até mesmo um sorvete podem mudar o astral. Se isso acontece no nosso universo afetivo – aqueles cinco minutos de paciência necessários para não estourar com uma mãe idosa –, por que não aconteceria no trabalho?!
Muito além do salário
Segurança e conforto material importam, claro. No entanto, como o budismo apregoa, esse desejo é mais um entre tantas ilusões que povoam a mente. A filosofia de Buda diz que nenhuma conquista, seja uma promoção, um carro zero ou uma bela casa, é capaz de verdadeiramente nos saciar. Logo, a ânsia humana por mais trará desassossego e a velha sensação de incompletude. Ainda mais se a medida da realização profissional estiver com o calibre desajustado. Para irradiar contentamento, e ampliar a percepção, a alma precisa de alimentos impalpáveis.
À semelhante conclusão chegou o filósofo australiano Roman Krznaric, autor de Como Encontrar o Trabalho da Sua Vida (ed. Objetiva). Depois de entrevistar todo tipo de gente em 12 países, ele constatou que, na chamada “era da realização”, a maioria quer, além de prosperar, “se sentir realmente viva”. E isso tende a acontecer quando conseguimos ver sentido, fluxo e liberdade naquilo que fazemos. O sentido advém da possibilidade de colocar valores em prática, angariando respeito e contribuindo para o bem coletivo; o fluxo é aquela deliciosa sensação de se descolar do tempo e do espaço quando fazemos algo que realmente apreciamos; e, por fim, a sonhada liberdade é reger o próprio relógio, obedecendo o descanso, os picos de produtividade e o tempo dos relacionamentos.
Curiosamente, o pensador foi cobaia da própria teoria. Cansado da burocracia a qual tinha de se submeter sendo professor universitário, tentou se regozijar como jardineiro, carpinteiro e técnico de tênis. Não foi feliz em nenhuma dessas posições. No entanto, aproveitou os “estágios” para descobrir o que o motivava a sair da cama toda manhã. “Percebi que precisava do respeito das pessoas ou me sentiria sem valor”, revela. Eis aí outro ponto crucial para se detectar o melhor rumo. “Muitas das nossas escolhas são equivocadas porque não dedicamos tempo e atenção ao mundo interno. Preocupe-se mais com isso e menos com o que os outros esperam de você”, sugere Fraiman. Daí brota a autorrealização que importa.