A multidão do metrô nunca fora tão ensurdecedora quanto na manhã de quarta-feira, quando me tornei cego. Eu estava na Estação de Metrô Tucuruvi, Zona Norte de São Paulo. Não enxergava nada, apenas ouvia sons tomando meus ouvidos por todos os lados e impulsionando-me a construir imagens mentais da realidade. Sem meus olhos, cada voz se tornou um rosto; cada ruído, uma forma; cada música, uma cor. O som dava forma à multidão. E, para mim, a multidão da Estação de Metrô era monstruosa.
Perdera a visão há poucos minutos. Mas diferentemente dos mais de 507 mil brasileiros que se declararam cegos no último Censo, minha cegueira era temporária. Vendado, perdi a visão para acompanhar Genivaldo Lopes de Souza, de 53 anos e deficiente visual há 17, até o seu trabalho e escrever esta reportagem. Queria saber o que eu enfrentaria caso amanhã, por acidente, ficasse cego, entender os desafios impostos pela cidade a pessoas com deficiência visual, descobrir o que falta para São Paulo se tornar mais acessível, mais democrática, mais humana.
Vendei-me na casa de Genivaldo, um aposentado por invalidez que mora no Parque Edu Chaves. Dali, iria acompanhá-lo até a Fundação Dorina, na Vila Clementino, onde ele ministra voluntariamente aulas de Informática para pessoas com deficiência visual. Ele me guiaria e me ensinaria a ver o mundo sem os olhos. Aliás, foi ele quem me disse que aprendia isso há 17 anos, mas que sua lição infelizmente não era um experimento. Ele se tornou cego em 9 de setembro de 1996, aos 36 anos. Gê, como é conhecido, estava encerrando o expediente de taxista quando um ladrão anunciou um assalto no vidro de seu táxi. A passageira ao seu lado reagiu e um tiro foi disparado. A passageira perdeu dois dedos, Gê passou a enxergar tudo branco, o ladrão fugiu. Nos anos seguintes, Genivaldo entrou em depressão, separou-se da mulher, que foi para Recife com três de seus cinco filhos, enfrentou 14 cirurgias, nunca viu mais do que vultos. Aposentou-se por invalidez em 1998, recebendo R$ 900.
Corrida de obstáculos
Sem enxergar, percebi, desde a saída da casa de Genivaldo, que São Paulo é uma cidade de obstáculos. Uma cidade onde um buraco raso com 30 cm de diâmetro pode até ser um obstáculo pequeno para quem enxerga tudo, mas é um grande perigo para quem não vê; uma cidade onde bengalas indicam, de poucos em poucos passos, um buraco ou uma poça formada pela água da chuva que se juntou na rua mal asfaltada; uma cidade onde grandes raízes de árvores invadem calçadas, onde sarjetas são estreitas e de alturas diferentes, onde pode-se deslizar o pé no cocô do cachorro a qualquer momento.
Não são obstáculos ocasionados apenas pela omissão – uns diriam incompetência – do Poder Público: são responsabilidade, também, de quem não segue as regras exigidas para a construção de calçadas; de quem quer cultivar uma árvore, mas não arca com as implicações ocasionadas pela escolha; de quem se preocupa em passear com o cachorro, mas não em manter limpos os espaços públicos.
Resultado: caí em buracos, pisei em poças d’água, me surpreendi com a altura de algumas calçadas. Só não pisei no cocô porque, antes, tive a sorte de meter a bengala em algo que parecia uma pedra, mas que se apresentou mais mole…
PhD em pisos táteis
Ficar cego exige reaprender a ler o mundo, reconstruir os símbolos que representam cada elemento da realidade, refazer os sinais que indicam para onde ir. A primeira letra do alfabeto latino (A) deixa de ser duas retas verticais inclinadas que se juntam no alto e são cortadas, no meio, por uma reta horizontal; se transforma em apenas um pontinho em alto relevo. Uma indicação para seguir adiante (↑) não é mais uma reta vertical com duas retas inclinadas no topo; passa a ser uma reta em alto relevo que aponta em direção ao caminho que deve ser seguido. O PARE já não é sugerido pelo sinal vermelho, mas por círculos horizontais em alto relevo que indicam uma mudança no trajeto: o fim de um corredor no metrô, o fim de uma calçada ou o início de uma rampa.
Durante o trajeto, conforme eu ia necessitando, Genivaldo me ensinava cada uma dessas representações. Foi ele quem me ensinou a ler com a bengala o piso tátil na Estação do Metrô. Depois de dois minutos deslizando a bengala no chão, já me sentia PhD em interpretação de pisos táteis e, julgando-me capaz até de ir vendado na 25 de março em véspera de Natal para fazer compras, soltei: “nossa, é muito fácil”. Gê não perdeu tempo: “sim, é superfácil. Difícil é encontrar espaços públicos na cidade com piso tátil. Fora as Estações de Metrô e a Avenida Paulista, raros são os locais.” De fato, saindo da Estação, fomos entregues à própria sorte.
Sinais sonoros
Sons são imagens para quem não vê. Pode parecer banal para quem tem a visão perfeita, mas é extremamente importante para uma pessoa com deficiência visual aquela voz do Metrô que informa em qual a estação o vagão está. Para Genivaldo é útil, mas como às vezes o volume é baixo e ele não consegue ouvir, Gê já encontrou um jeitinho para saber onde está mesmo se não escutar: em sua cabeça, já construiu um mapa mental dos trilhos do metrô e, de acordo com as curvas dos túneis, sabe se está na Luz ou na Vila Mariana. As portas, de acordo com o lado que abrem, também o guiam. Claro que eu, que ficara cego pouco antes, não poderia dizer que estava na Estação Tietê só porque a porta se abriu do lado direito – aliás, eu, que me localizo muito mais pela visão do que pela audição, nem sabia ao certo quando a porta abria do lado direito ou esquerdo… Gê sabia pelo som e pela direção do vento.
Se no Metrô dá para recorrer a um jeitinho brasileiro, não dá para fazer isso com segurança na hora de atravessar a rua. Se o farol ficar vermelho para os carros mas o semáforo de pedestres não for sonoro, um cego é incapaz de saber, sozinho, quando pode atravessar. Depois que eu tirei a venda, o fotógrafo – com a função de nos acompanhar, mas de não interferir no andamento da reportagem – me disse que, em um farol, ficamos parados por 30 segundos após o sinal fechar para os carros. Como ninguém estava passando para nos informar que podíamos seguir, permanecemos na calçada segurando a bengala, esperando o sinal abrir, alguém nos ajudar e o Poder Público criar vergonha e instalar Sinais Sonoros nas faixas para pedestres.
Solidariedade paulistana
Vindo de uma pequena cidade do interior, sempre achei São Paulo uma cidade de pessoas frias, distantes, individualistas. Precisei perder a visão por uma manhã e sentir, em vários momentos, desconhecidos segurando em meu braço e me guiando para perceber que, no meio da multidão que às vezes parece formada por animais irracionais que seguem inertes sem questionar, há gente disposta a ajudar. A ajudar a subir os degraus do ônibus, a atravessar a catraca do Metrô, a descer a escada – que parece não ter fim – da Estação Tucuruvi, a ceder o lugar no vagão, a atravessar as ruas… Havia gente disposta a ajudar por todo o trajeto. Sem desconfiarem que aquilo era apenas um experimento, muitos foram os que me estenderam a mão. “As pessoas em São Paulo são muito boas”, disse-me Genivaldo. Perguntei se, quando ele viajava para outras cidades, era igual, no que ele respondeu: “no interior, a ajuda é menor. Acho que as pessoas estão menos acostumadas com a presença de cegos nas ruas”. Ele me contou que nunca se aproveitaram de sua cegueira para o assaltarem ou o enganarem.
Chegamos à Fundação Dorina, Ong que trabalha para incluir pessoas com deficiência visual e na qual Genivaldo dá aulas de Informática como voluntário, depois de quase duas horas. Ao tirar a venda, permaneci alguns segundos com os olhos fechados, cheios de lágrimas. Lembrei-me de quando cheguei à maior metrópole brasileira e escrevi: “São Paulo é uma cidade para fortes, interditada para quem não quer mergulhar de cabeça.” Nunca essa frase fizera tanto sentido em minha mente. Mas também nunca pensei que meu conceito de “ser forte” ainda era tão fraco perante a força que um deficiente visual precisa ter para enfrentar os desafios impostos pela cidade despreparada, pela Prefeitura que fecha os olhos para adaptar o município aos deficientes, pelo cidadão comum que vê e obra do Poder Público um atitude, mas que não torna acessível nem a própria calçada. Sim, São Paulo é uma cidade interditada para quem não quer mergulhar de cabeça.